HUMANIDADES E OUTROS DEBATES

Blog do Grupo de Estudos em História e Demais Humanidades - GEHH

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A Fabricação da República do Brasil sob o olhar de José Murilo de Carvalho

Resenha de A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil de José Murilo de Carvalho
Bruno Antonio Picoli

José Murilo de Carvalho nasceu em Minas Gerais em 1939. É doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Stanford. Atualmente é professor titular do departamento de História da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras. Realizou várias pesquisas sobre o período de transição Império-República do Brasil, dos quais foram publicadas as seguintes obras: “Os Bestializados: o Rio de janeiro e a República que não foi”, “Teatro de Sombras”, “D. Pedro II”, entre outros. Na obra, aqui analisada, expressa claramente sua simpatia pelo regime monárquico – talvez por influência do plebiscito de 1993 referente à re-implantação da monarquia no Brasil (a obra é de 1989) – como na afirmação da página 26: “Via-se no Império brasileiro, por exemplo, o atraso, o privilégio, a corrupção, quando o imperador era dos maiores promotores da arte e da ciência, quando a nobreza era apenas nominal e não hereditária, quando o índice de moralidade pública era talvez o mais alto da história independente do Brasil”. A análise cultural realizada pelo autor enfatiza-se na identificação dos símbolos criados para “formar as almas” ainda não republicanas em partidários do novo sistema, a partir de uma linguagem subjetiva, porém reveladora dos contrastes e dos conflitos de interesses.

Tão importante quanto às instituições para a consolidação de um regime político, são os símbolos – iconográficos ou discursivos (iconográficos e discursivos) – pois aproximam do povo as estruturas e, principalmente, às legitimam. Quando da implantação da República no Brasil três correntes de pensamento ideológico disputavam o predomínio: os liberais, os jacobinos e os positivistas. A primeira corrente, embora tenha angariado poderes com as oligarquias, não desenvolveu ampla simbologia, visto que não era partidária da participação popular. As demais batalharam para a firmação de um imaginário coletivo – cada uma sob seu ponto de vista.

Embora vários grupos disputassem poder no processo de consolidação da República – liberais, jacobinos, militares... – o que mais se destacou, estando envolvido em todos os debates, foi o positivista. Ao contrário dos europeus, os positivistas brasileiros eram oriundos da classe média. Não se faziam presentes latifundiários – ligados a cultura escravista – nem proletários – incipientes no período tanto no campo quanto nas cidades. Por ser um grupo que ainda buscava ascensão, necessitavam convencer os populares e atraí-los. As narrativas e a iconografia foram às armas positivistas neste processo.

O referencial simbológico desenvolvido no período é altamente influenciado pela tradição francesa – dos ciclos revolucionários de 1789, 1830, 1848 e 1870. Como exemplo, pode-se citar a representação da República na figura alegórica de uma mulher e o “barrete frígio” cobrindo a cabeça desta. Além disso, contou-se com a criação de símbolos “puramente” nacionais, como os heróis, que “[...] por ser fruto de um processo de elaboração coletiva [...] nos diz menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz.” (p.14). É importante salientar que os símbolos são vivos e variam conforme as necessidades conjunturais. “A aceitação ou rejeição dos símbolos propostos poderá revelar as raízes republicanas pré-existentes no imaginário popular e a capacidade dos manipuladores de símbolos de refazer este imaginário de acordo com os novos valores.” (p.13).

No capítulo primeiro, intitulado “Utopias Republicanas”, Murilo de Carvalho expõe divergentes concepções de República. No tocante à liberdade salienta a diferença entre a “dos antigos” e a “dos modernos”. A primeira consiste na participação direta do cidadão na política e, a segunda, que a dinâmica do mundo pós-Revolução Industrial fez com que os cidadãos “trocassem” a liberdade política pelas liberdades civis. Quanto às divergentes concepções republicanas, apresenta três propostas do período inicial da República do Brasil. Em primeiro lugar a vertente liberal. Defende a idéia de nação sem patriotas, onde os indivíduos, na busca incessante de assegurar seus interesses, organizam a sociedade. A teoria de República dos positivistas – com toda sua carga simbológica – defendia a instituição da “ditadura republicana”, onde um líder virtuoso guiaria os destinos da nação. Um dos pontos principais, que difere este do grupo anterior, é a defesa da incorporação das classes baixas à nação. Ambas salientavam o predomínio da “liberdade dos modernos”, pois não eram simpatizantes da participação popular efetiva na vida política. A terceira corrente é chamada de jacobina – grupo pequeno, porém barulhento, como ressaltou o autor. Radical e ligado à idéia da “liberdade dos antigos”.

Todas estas teorias – utopias – encontraram o entrave da ausência de sentimento e identidade nacional, principalmente no tocante “população com as instâncias normativas de poder instituído”; esta realidade forçou os dois últimos grupos a desenvolverem frutífera simbologia para “tocar” as almas dos brasileiros. No que tange especificamente a concepção liberal, faltava aos brasileiros a maturidade política, pois, na busca por seus interesses, ocorriam constantes violações aos direitos alheios, era “o espírito do capitalismo sem a ética protestante” (p.30) parafraseando o sociólogo alemão Max Webber.

No segundo capítulo, “As Proclamações da República”, são abordadas as disputas pela composição de um “mito de origem”. Novamente apresenta-se na disputa três versões: a militarista, a positivista e a liberal. Cada uma apresenta seu herói – ou seu panteão – e elabora seu depoimento. Também existe o desejo/necessidade de denegrir a figura do herói do grupo oposto. Esta disputa se justifica pela afirmação dos novos donos do poder.

A vertente militarista enfatiza o ato heróico do Marechal Deodoro da Fonseca. A proclamação da República foi um ato corporativo. Planejado e executado pelo Exército. Sendo a monarquia considerada inimiga dos militares, a República seria a salvação destes. A perspectiva positivista apresenta a tríade cívica Tiradentes, Bonifácio e Constant. Este último não é apresentado como um simples militar é um ideólogo, possuidor de um projeto de Brasil que extravasava os limites do Exército. Fora ele quem teria encorajado o temeroso e monarquista Deodoro e articulado os atos do dia 15 de novembro. A elite civil, evidentemente excluída dos acontecimentos do dia 15, buscou criar um discurso em que o Exército foi usado como ferramenta pelo Partido Republicano. Conforme os liberais, Bocaiúva é o articulador, enquanto Constant hesita. O fato é que a ausência de participação popular no movimento fez com que nenhum destes “heróis” possuísse a amplitude necessária para ser bem aceito perante os vários segmentos sociais. Para a legitimação do novo regime foi resgatada a figura de Tiradentes, maleável aos conflitantes interesses.

“Ei-lo, o gigante da praça,
O Cristo da multidão!
É Tiradentes quem passa...
Deixem passar o Ti tão.” (Castro Alves) (p.60)

A falência das figuras de novembro de 1889 decorre da não universalidade destas: Deodoro era questionável em essência, havia dúvidas sobre seu caráter republicano; Constant era bem aceito pelas baixas camadas do Exército e pelos positivistas, não sendo reconhecido pelo restante; Floriano Peixoto não era querido pela marinha nem pelos liberais (por suas ações frente à Revolta da Armada e à Revolta Federalista). A heroicização de Bocaiúva não foi encarnada nem pelos liberais.

O culto a Tiradentes era comum em alguns círculos políticos fechados durante o segundo reinado. Sua figura gerava desconforto quando levada a público – a lembrar que D. Pedro II era bisneto de D. Maria I, a louca. Neste contexto algumas obras foram apresentadas atribuindo características conflitantes a esta personagem. Destaca-se a obra, de Joaquim Norberto de Souza e Silva, “História da Conjuração Mineira”, no qual o autor critica o comportamento de Tiradentes diante de sua sentença. Aproxima o condenado da figura politicamente resignada do Cristo ante Pilatos, salientando que a influência dos monges franciscanos extraiu seu rubor de conjurado. Paradoxalmente, ao aproximar Tiradentes de Cristo criou-se uma imagem imaculada de mártir que morreu por uma causa, sem derramar sangue alheio. Portanto a moral cristã foi utilizada – poética, discursiva e iconograficamente – para forjar o herói e legitimar o novo regime. A vitória da República foi possível pela cessão a valores tradicionais católicos, os mesmos que a própria República afirmava combater.

Faltava ainda, para completar o amálgama sócio-político, atrair segmentos monarquistas. Para tal, a Inconfidência passa a ser definida pela historiografia oficial como “movimento libertário”. Deste modo, ao emancipar politicamente o Brasil, D. Pedro I estava realizando o sonho do alferes. Para não suscitar dúvidas e reações, o movimento mineiro ganhou nova característica: ser abolicionista. Estava composta a tríade ideológica da fajuta brasilidade: “na figura de Tiradentes todos podiam identificar-se, ele operava a unidade mística dos cidadãos, o sentimento de participação, de união em torno de um ideal, fosse ele a liberdade, a independência ou a república.” (p.68)

Eleito o herói cívico nacional – forjado conforme os anseios das elites republicanas – fazia-se necessária a constituição de um símbolo para o novo regime – melhor dizendo uma encarnação. Este deveria trazer os princípios de liberdade, humanidade, pátria e república. Da Europa, mais especificamente da França, veio o modelo utilizado pelos positivistas brasileiros.

A participação popular nas jornadas revolucionárias daquele país foi de todo efetiva. No decorrer do processo a liberdade passou a ser representada pela figura feminina – devido a indubitável influência das mulheres, como expressa a obra “A Liberdade Guiando o Povo” de Delacroix. Outro fator que evidentemente contribuiu para o sucesso deste significante era que a monarquia tinha no rei seu representante, uma figura masculina, autoritária, em contraposição à feminina dos republicanos, afável e maternal.

Os positivistas brasileiros também se utilizam da mulher como significante da República. Além de não ter havido nenhuma participação feminina na derrubada do antigo regime – o que não legitimava a alegoria – os artistas brasileiros pautavam-se em modelos europeus – não raro viviam naquele continente. Ou seja, além do símbolo ser falho, a mulher representada não era indígena, negra, mulata. Sequer do povo era ela. Um exemplo clássico do distanciamento entre o artista e seu objeto esta na obra “Alegoria da República” de Manuel Lopes Rodrigues que, ao retratar a República sentada, soberba, soberana e tranqüila em 1896 – durante a Guerra de Canudos – demonstrava não possuir qualquer conhecimento da realidade sócio-política aqui vigente.

Em larga vantagem frente à falida “República Mulher” estava a personagem da Aparecida. Era comum no país a mariolatria e, além disso, o fato de ser brasileira e negra contribuiu para que a Igreja a utilizasse como propaganda anti-republicana – até que estes se apoderassem de sua figura. Como conseqüência da impopularidade da República, a figura feminina é retratada como prostituta, servindo aos interesses de alguns grupos privilegiados. A discrepante falência desta idealização decorre do fato de que “[...] o imaginário, apesar de manipulável, necessita, para criar raízes, de uma comunidade de imaginação, de uma comunidade de sentido. Símbolos, alegorias, mitos só criam raízes quando há terreno social e cultural no que se alimentar. [...] No Brasil não havia.” (p.89)

Ninguém questiona a importância de legitimar o novo regime através da construção de um mito de origem, de um panteão de heróis e de símbolos próprios. Porém, havia a possibilidade de estender o tempo desses confrontos e de re-significar os significantes, o que não ocorria com a escolha da bandeira e do hino. Para estes elementos da nacionalidade havia prazo para encerrarem-se os enfrentamentos, pois se constituem obrigatoriedades para todo regime e/ou país.

No ínterim a bandeira, destaca-se a disputa ideológica entre os positivistas e os liberais. Os primeiros afirmavam ter orientação francesa, enquanto os segundos possuíam aspirações estadunidenses – o que fica evidente com o hasteamento da bandeira do clube Lopes Trovão, notadamente influenciada pela do país do norte, como novo pavilhão nacional. Detalhe de importante destaque é a cor utilizada para o quadrilátero: preto. Supostamente a homenagem era aos negros. As réplicas substituíram o fundo negro por um azul – resta saber se por motivos de descuido, estética ou racismo. Seja como for, o pendão liberal foi substituído por um baseado no imperial, com a retirada da esfera armilar e a subseqüente substituição por uma circunferência azul com a divisa positivista “Ordem e Progresso”.

A frase gerou rejeição e propostas para a alteração. Ao manter o fundo verde e o losango amarelo, o novo símbolo foi bem aceito até por setores monarquistas. Conforme o autor expressa, na página 116, “apesar da resistência a divisa positivista, [...], a bandeira republicana teve maior aceitação do que a mitificação dos heróis do 15 de novembro e certamente despertou maior respeito do que a figuração feminina da República.”

Talvez a única participação popular na fabricação dos símbolos do novo regime tenha sido na oficialização do hino nacional. Observa-se que é o mesmo do período monárquico. Algumas tentativas de substituição foram ensaiadas, porém o velho hino – preferido pela maioria – poderia ser utilizado como arma anti-republicana. Segundo Carvalho, a República ganhou cedendo lugar à tradição. A oficialização destes símbolos – hino, bandeira, herói... – deixa evidente a deficiência da República em criar mecanismos de empolgação popular, tendo que recorrer às raízes mais profundas – muitas vezes alheia a sua imagem – para se popularizar.

Os republicanos falharam na construção de uma comunidade de imaginação. Recorreram à cultura católica e imperial para realizar o amálgama social. Murilo de Carvalho chega a afirmar que o maior ícone nacional – a Pietá cívico-religiosa – brasileiro seria o Tiradentes cristificado, esquartejado, nos braços da Aparecida, ou seja, “a nação exibindo, aos pedaços, o corpo de seu povo, que a República ainda não foi capaz de reconstituir.” (p.142).
Referência
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. 166p.

Um comentário:

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